sexta-feira, 30 de junho de 2017

Matriz, Mãe, Maternidade (Mônica Von Koss)



Matriz, Mãe, Maternidade (Mônica Von Koss)
"(...) Enquanto gestar e parir são ações biológicas restritas às mulheres, o impulso para maternar, aquilo que costumamos chamar de amor materno, é a expressão do desejo humano de conservar e promover a vida. E como todo desejo humano, é uma escolha mais ou menos consciente, disponível a qualquer ser humano.
O impulso para maternar independe da maternidade biológica, como bem o demonstram mulheres e homens que dedicam sua vida a cuidar de outros, independentemente de serem crianças ou seus filhos biológicos. Não há um instinto maternal, que surge automaticamente da ação biológica do parir, como fica evidente no fenômeno conhecido como depressão pós-parto. Manter e nutrir a vida são escolhas que fazemos; mas, pelo fato destas escolhas terem sido feitas conscientemente por milhares de anos e milhões de seres humanos, ficaram tão profundamente enraizadas na própria essência humana, que a tomamos por asseguradas e nos surpreendemos, quando não ocorrem. Em condições normais, o amor materno é uma emoção resistente e teimosa, que pode ser expressa por todo ser humano.
Historicamente, a ação de maternar está mais associada à mulher, por ser ela a nutridora biológica no início da vida. Mas nutrir não significa apenas alimentar, significa criar um espaço relacional de total aceitação e confiança mútua, baseado em uma convivência corporal íntima, elementos fundamentais para o bom desenvolvimento psíquico e emocional de todo ser humano.
(...)
Na pré-história, quando a opção de maternar ficava a cargo das mulheres, elas escolheram conservar a vida, no sentido de preservar o corpo físico para a continuidade da espécie. Levando em consideração a sobrecarga representada pela maternidade naquelas condições primordiais, a real motivação para maternar foi o amor.
Quando a base econômica dos grupos humanos passou a ser o pastoreio, o parir das fêmeas, animais e humanas, se tornou uma fonte de riqueza. Quando o homem passou a exercer o poder sobre a mulher e sua prole, passou a prevalecer a utilidade social e econômica, entendida como o uso do corpo para a geração de riqueza, para o trabalho e para a guerra. Na idade clássica grega, a mãe cuidava apenas das crianças que eram escolhidas para se tornarem adultos, a escolha cabendo ao pai. Domínio, poder e riqueza determinavam a maternagem.
Na Idade Média surge uma imagem materna idealizada, a maternidade separada da sexualidade. Não existia ainda a noção de infância, sendo que, a partir dos sete anos de idade, a criança já era considerada adulta e encaminhada para sua função. Com a redução do corpo feminino à função procriadora, dissociada da experiência do prazer, a mulher passou a ser classificada como santa ou prostituta. Seu corpo já não lhe pertencia, era apenas um instrumento, e a maternidade, dissociada do corpo, foi santificada.
Na modernidade surge o conceito de ‘boa mãe’, uma mulher bem casada, fiel, subserviente e modesta. A mulher se tornou parte da mobília mental do homem e dos filhos, o anjo da casa. Como pessoa, estava a serviço da família nuclear idealizada. A maternagem se resumia à execução das regras estabelecidas por cientistas especializados na criação de filhos. A motivação para maternar passou a ser o sucesso social do marido e dos filhos.
A partir do século XX presenciamos a reintegração da mulher como pessoa, como elemento atuante na teia social, para além de sua função procriadora e nutridora no seio familiar. Ao saírem de casa para trabalhar, as mães caíram do pedestal e muitas mulheres passaram a viver o conflito entre ser mulher e ser mãe, entre realizarem suas aspirações genuínas como pessoas e as expectativas sociais tradicionalmente depositadas nelas.
O presente sistema de crenças, que fundamenta nossa ação no mundo, é um mosaico destes estágios históricos a respeito da maternidade. Por isto, é urgente revermos nossas crenças e expectativas coletivas em relação à maternidade, para criarmos um sistema que agregue todas as pessoas envolvidas neste ato fundamental para a vida, a fim de criarmos um futuro mais harmonioso.
Em um sentido mais amplo, somos todos integrantes da grande família humana, o que nos torna responsáveis uns pelos outros. Mais especificamente, quando um homem e uma mulher se encontram e trazem novas vidas ao mundo, ambos são igualmente responsáveis pelos cuidados de sua prole. Como estes cuidados serão distribuídos e exercidos pode depender de inúmeros fatores, em cada caso particular. Mas a idéia de que são primordialmente as mulheres que devem exercer os trabalhos de maternagem não é mais sustentável hoje, em que o envolvimento físico e emocional do pai na criação dos filhos se tornou um fator de fundamental importância.
Precisamos nos perguntar quais são as reais necessidades das crianças, aquelas que precisam ser atendidas, para que elas se desenvolvam e se tornem membros saudáveis e felizes da comunidade humana, sem que isto esgote a energia de mulheres e homens no exercício de suas funções como progenitores. Precisamos refletir a respeito de quais recursos a comunidade humana como um todo precisa colocar à disposição dos adultos, para que eles possam desempenhar satisfatoriamente suas funções sociais e familiares, sem negligenciar suas próprias aspirações genuínas.
Para desenvolvermos um modelo de maternidade que esteja à altura de uma nova ordem social, precisamos ampliar a noção de maternidade, retirando-a exclusivamente do universo biológico. Precisamos entendê-la como uma maneira de criar uma nova comunidade, mais ampla e inclusiva, que proporcione a todos os seus integrantes os meios de realizar suas contribuições para esta comunidade de um modo digno, sejam estes meios econômicos, físicos, emocionais, ocupacionais, educacionais, espirituais.
Colocar o valor e o cuidado da vida como objetivo primeiro em todas as nossas ações significa resgatar a escolha original das mães ancestrais. Significa promover a vida em todas as suas formas de manifestação, restabelecendo a unidade primordial da criação.
E você sempre pode começar consigo mesmo, maternando amorosamente todas as suas diversas partes, principalmente aquelas que você gostaria de deixar de lado, nutrindo e cuidando de si mesma, para que você se torne um membro valoroso desta família humana. Enquanto você materna a si mesma, você estará maternando a humanidade."
Mônica Von Koss, antropóloga
Texto na íntegra em:
http://www.monikavonkoss.com.br/…/matriz-m%C3%A3e-maternida…
(Texto postado por Sahwenya Passuelo no ano de 2016)

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