quinta-feira, 16 de junho de 2016

O corpo e sua herança física...


 (Clarissa Pinkola Estés)





O poder cultural do corpo é a sua beleza, mas o poder no corpo é raro, pois a maioria das mulheres o expulsou com torturas ou com sua vergonha da pró­pria carne.

Difamar ou julgar o físi­co herdado de uma mulher é criar gerações e mais gerações de mulheres ansiosas e neuróticas. As críticas destrutivas e des­denhosas a respeito da forma herdada de uma mulher privam-na de diversos tesouros psicológicos e espirituais preciosos e de vital importância.

Privam-na do orgulho pelo tipo de cor­po que lhe foi transmitido por linhagens de antepassados. Se lhe ensinarem a rejeitar essa herança física, ela será imediata­mente desvinculada da sua identidade corporal feminina com o resto da família.

Se lhe ensinarem a detestar o próprio corpo, como poderá ela amar o corpo da mãe, que tem a mesma estrutura que o seu? — ou o corpo da avó, ou das suas filhas também?
Co­mo poderá ela amar os corpos de outras mulheres (e homens) próximas a ela que tiverem herdado o corpo dos mesmos ante­passados? Semelhante agressão a uma mulher destrói seu legí­timo orgulho de parentesco com sua própria gente e lhe rouba a alegria natural que ela sinta por seu corpo, não importa qual seja sua altura, tamanho ou forma. No fundo, a agressão ao cor­po da mulher é uma agressão de longo alcance que atinge, tanto os que vieram antes dela, quanto os que chegarão depois.

O que acontece é que críticas ásperas a respeito da aceita­bilidade do corpo criam uma nação de garotas altas corcun­das, de baixinhas sobre pernas de pau, de mulheres avantaja­das vestidas como se estivessem de luto, de outras muito ma­gras que tentam se inflar como serpentes e vários outros tipos de mulheres que se escondem. Destruir o vínculo instintivo da mulher com seu corpo natural subtrai-lhe a confiança. Faz com que ela insista em descobrir se é uma boa pessoa ou não, e baseia sua auto-estima na sua aparência em vez de na sua es­sência. Ela é pressionada a gastar sua energia preocupando-se com a quantidade de alimento que consome, com os números na balança ou na fita métrica. Essa destruição lhe dá uma idéia fixa e influencia tudo o que ela faz, planeja e prevê. No mun­do instintivo, é inconcebível que uma mulher viva absorta desse jeito, com sua aparência.

Faz total sentido manter-se saudável e forte, cuidar do cor­po da melhor forma possível. No entanto, devo admitir que muitas mulheres têm uma "faminta" dentro de si.
Em vez de "famintas" por ter um certo tamanho, formato ou altura; em vez de "famintas" por se adequar ao estereótipo, as mulheres têm fome de consideração básica por parte da cultura que as cerca. A mulher "faminta" ali dentro anseia por ser tratada com respeito, anseia por ser aceita, e no mínimo anseia por ser vista sem preconceitos. Se realmente existe uma mulher "gri­tando para sair", ela está pedindo aos gritos que terminem as projeções desrespeitosas que os outros lançam sobre seu cor­po, seu rosto, sua idade.

Está errada a imagem vigente na nossa cultura do corpo exclusivamente como escultura.
O corpo não é de mármore. Não é essa a sua finalidade.
A sua finalidade é a de proteger, conter, apoiar e atiçar o espírito e alma em seu interior, a de ser um repositório para as recordações, a de nos encher de sen­sações — ou seja, o supremo alimento da psique. É a de nos elevar e de nos impulsionar, de nos impregnar de sensações para provar que existimos, que estamos aqui, para nos dar uma ligação com a terra, para nos dar volume, peso.

O corpo é como um planeta. Ele é uma terra por si só.
Como qualquer paisagem, ele é vulnerável ao excesso de construções, a ser retalhado em lotes, a se ver isolado, esgotado e alijado do seu poder. A mulher mais selvagem não será facilmente influenciada por tentativas de urbanização.
Para ela, as questões não são de forma, mas de sensação.
O seio em todos os seus formatos tem a função de sentir e de amamentar. Ele ama­menta? Ele é sensível? Então é um seio bom.
Já os quadris são largos por um motivo. Dentro deles há um berço de marfim acetinado para a nova vida. Os quadris da mulher são estabilizadores para o corpo acima e abaixo de­les.
Eles são portais, são uma almofada opulenta, suportes para as mãos no amor, lugar para as crianças se esconderem.
As pernas foram feitas para nos levar, às vezes para nos empurrar, elas são as roldanas que nos ajudam a subir; são o anulo, o anel que abraça o amado. Elas não podem ser criticadas por serem muito isso ou muito aquilo. Elas simplesmente são.
No corpo, não existe nada que "devesse ser" de algum jeito.
A questão não está no tamanho, no formato ou na ida­de, nem mesmo no fato de ter tudo aos pares, pois algumas pessoas não têm. A questão selvagem está em saber se esse cor­po sente, se ele tem um vínculo adequado com o prazer, com o coração, com a alma, com o mundo selvagem. Ele tem ale­gria, felicidade? Ele consegue ao seu modo se movimentar, dan­çar, gingar, balançar, investir? É só isso o que importa.
A Mulher Selvagem aparece em muitos tamanhos, formas, cores e condições.
Mantenha-se alerta para poder reconhecer a alma selvagem em todos os seus inúmeros disfarces.

Morada dos Avós-Alma da Terra.